panela de pressão

Eu e a panela de pressão: uma relação maior que o medo

by Xila Damian

A soberba dissimulada

Não sabia fazer feijão.  Parte porque nunca havia precisado aprender e, por consequência, por desinteresse mesmo. Mas, em vez de assumir a real, justificava a incompetência com a desculpa do medo de panela de pressão.  Anos depois, vivendo a surreal quarentena do COVID19, muito mudou.  A começar pela necessidade de voltar ao começo de tudo: aprender a cozinhar.

Passei grande parte da vida convencida de que não precisava aprender a cozinhar. Contava com terceiros para isso. Enquanto me dedicava a aprender coisa “mais importante”, me amparava no trabalho destes e, na falta, minimizava a escassez fingindo não importar.  Mas a pandemia mudou esta dinâmica.

A pandemia me educou na cozinha

Depois das primeiras semanas de isolamento, acabou o feijão estocado no freezer. Sem saber prepara-lo, acionei mentalmente o “tudo bem” fingindo indiferença.  Porém, com o passar dos dias,  o desejo de saborear um bom prato de feijão crescia.  Precisava fazer feijão… mas como?

Então, forçada a encarar a cozinha com autoridade disfarçada de medo de panela de pressão, enfrentei realidade maior do que a inabilidade e o desinteresse: vi o desperdício de oportunidade de nutrir filho adolescente com memórias afetivas a partir do simples – e natural – preparo de refeições à família.

De volta ao começo

Naquele dia dei um basta:

– Que falta faz o arroz com feijão!

Entregue ao retesado desejo, pedi socorro à vizinha:

– Por favor, não aguento mais! Um saco te pedir isso mas preciso de feijão. Será que cozinharia um pouco pra mim? – pedi descaradamente.

Enquanto muitos se consolavam na esperança de um rápido retorno à vida “normal”, este me parecia já se instaurar pela falta de feijão pronto.  Prioridades domésticas reordenadas, precisei aprender a cuidar de minha casa como nunca antes. Fazer feijão, na verdade, era só o começo de uma série de mudanças de volta ao básico do ser humano.

Além da panela de pressão

Tinha verdadeiro horror a panela de pressão.  Trauma de infância, talvez;  tão forte que não conseguia lembrar ou talvez preferisse esquecer. O temor ao utensílio me impedia de seguir como antes da pandemia. Arisca à ferramenta, não por acaso, ficava socada no fundo do armário.

Fora do meu alcance – e da minha vista – passava desapercebida. Fingir sua inexistência me eximia de encarar o medo e a inabilidade até o antes desaparecer e me exigir mudanças exigentes como, por exemplo, encarar medos aparentemente triviais.

Achei a panela de pressão escondida atrás da tranqueira de panelas e afins. Junto com ela, também memórias de um tempo em que cumprir deveres domésticos básicos contribuía com a formação de identidade de filho.

Mais do que comida, memórias

Panela de pressão sempre me assustou. Lembro de observar minha avó preparando pratos com a aparato com destemida habilidade.  Enquanto assistia admirada sua íntima desenvoltura, nutria o medo infantil da panela de pressão.

Intrigada com seu funcionamento aparentemente complexo e o estridente som emitido sob forte escape de fumaça, corria apavorada pela casa gritando:

–  Vó, vai explodir!  Desliga esse troço, vó!  Sai daí, larga isso, apaga o fogo!

Já longe da cozinha, escutava sua gostosa gargalhada e, junto, convidativo cheiro de feijão. Decerto que o medo de panela de pressão nasceu daqueles momentos com a avó que, cozinheira de mão cheia, deixava sua marca por meio de sua comida cheirosa… e cheia de histórias.

O que perdia por não saber cozinhar

Também sempre fui organizada. Graças à incansável mãe disciplinadora, casa arrumada virou condição imperativa a filho adolescente. Já cozinhar… virou memória de um tempo em que usar panela de pressão era sinônimo de medo, cheiros e risadaria.

– Não sei cozinhar –  respondia a quem perguntava sobre meus dotes culinários.

Fã de um bom prato, não sabia preparar nada. E, honestamente: não me importava com isso. Na verdade, não me incomodava de ser “nula na cozinha”; como disse, contava com ajuda pra isso.  A inabilidade assumida sem reservas me conferia álibi para aprender coisas diferentes  e “mais importantes”.

Minha mãe também não sabia cozinhar. Dedicada a atividades intelectuais, sempre delegou a fiéis terceiros a tarefa. Como eu, nunca se furtou de admitir sua incompetência a justificando como simples inabilidade. Na verdade, também não gostava de cozinhar e isso era bem resolvido com ela.

Em contrapartida, desempenhava melhor outras funções o que lhe conferia certa redenção de não saber cozinhar a própria comida. Mas, a pandemia mudou minha lente sobre o fato evidenciando algo inusitado: cozinhar pode ser rica oportunidade de nutrir memórias insubstituíveis em família, como as vividas com minha avó, por exemplo.

Das necessidades básicas às memórias

Não sabia fazer feijão nem qualquer outro prato. Absolutamente nada.  A inabilidade e o desinteresse foram parte herdados de mãe igualmente inapta e desinteressada na função, recebida sem qualquer peso ou resquício de vergonha. Pelo contrário: até com certo orgulho com a “afinidade materna” até a extraordinária pandemia se instaurar.

A cada dia de reclusão, a ordem doméstica cobrava reordenação. Voltar ao básico da vida virou necessidade e o simples da vida logo mostrou seu valor esquecido.  De repente, memórias até então escondidas com a panela de pressão vieram à tona. Como a da vó na cozinha que, enquanto cozinhava, escrevia histórias afetivas que se eternizariam.

O vírus, ironicamente invisível aos olhos mas nem por isso inócuo – apavorou no começo.  Imperceptível e desconhecido, logo mostrou seu poder de parar o mundo e trancar famílias em suas casas. O medo da panela de pressão ficou, então, pequeno diante do temor causado pela pandemia.

Surpreendentemente as tarefas domésticas ganharam protagonismo no mundo moderno e tecnológico.  Pretensiosamente intelectualizados, fomos forçados a voltar ao começo de tudo e assumir o cuidado da família de perto como há muitas décadas não fazíamos.

O temido vírus nos forçou a voltar às necessidades básicas de sobrevivência como, por exemplo, preparar as próprias refeições e eu, enfim, encarar a panela de pressão. A superação – ainda que aparentemente boba – não só supriu a família de suas necessidades primárias como inaugurou a fase de memórias pela “comidinha da mamãe”.

O sabor das memórias

No começo ainda desinformada, suspirei aliviada de ainda contar com comida congelada no freezer.  Mas gradativamente, o estoque baixava e o perigo iminente de ter de me virar na cozinha se aproximava. A partir da escassez não tive escapatória senão encarar a panela de pressão.

O novo tempo desvendava paulatinamente a necessidade de desenvolver habilidades até então desprezadas e assustadoramente básicas como a de cuidar da própria casa com a autoridade de dona. O mundo auto intitulado moderno começou a me cobrar tarefas domésticas para sobreviver.

O extraordinário período começou a me impor lições incontestáveis sobre o simples da vida. Sem filtros, me curei da cegueira; sacudida, fui despertada do torpor da soberba incapacitante. Assim, pela necessidade e pelo desejo – não necessariamente nesta ordem – de saborear feijão, mirei a panela de pressão, aprendi a cozinhar… e a cuidar da casa.

Curiosamente, tomei gosto  pela coisa resgatando e tecendo memórias há muito escondidas no armário. Mais do que o corpo, passei a nutrir também a alma. Chafurdadas no fundo do armário junto com a panela de pressão, sobrevieram experiências de vida simples ricamente preenchidas com aprendizados.

Entre cheiros e risadas, pratos e temperos, a vida tinha sabor inigualável, insubstituível e incomparável de… amor.

Tempo de transformar a relação em família

Finalmente íntima da cozinha – menos do que a avó mas bem mais do que minha mãe – aprendi a fazer feijão.  Longe de ser meu melhor prato, provou que cozinhar e qualquer outra atividade doméstica merece o esforço de ser aprendida e devida a quem conhece o valor do cuidado familiar:

–   Mãe, que gosto é esse no feijão?

Tensa com a ameaça de uma crítica ao pífio resultado de horas junto à panela de pressão, respondi timidamente:

– Que gosto? Tá ruim, filho?

– Não… pelo contrário: tá mil vezes melhor que o da Vera.  Tá podendo, hein, mãe?

Saboreei o momento. Não só venci o medo (disfarçado) da panela de pressão como também aprendi a fazer feijão e, ainda imprimi memórias de um tempo em que me tornei cozinheira de mão cheia a filho adolescente. Nem vó nem mãe acreditaria mas precisei de um vírus para mudar muitas coisas em casa.

Tempo extraordinário – e oportuno – a quem conseguir enxergar além para transformar o simples da vida em momentos e lembranças únicas eternizadas na alma… até por uma famigerada relação com a panela de pressão.

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