Aquela não foi a primeira vez
Na verdade, foi a terceira. Como que pai e filho, professor e aluno chegaram chegando, ou seja, dominando o pedaço sem aviso prévio. Foi assim que, naquela manhã ainda tranquila e silenciosa, a dupla marcou território no píer dedicado a usuários da balsa e a contempladores da exuberante vista propiciada pela natureza.
Pareciam entender o espaço como disponível e exclusivo às suas vontades. Sem cerimônia, alojaram a caixa de som em uma das quinas do limitado quadrado de madeira e, ruidosamente, posaram para rápida foto e imediata postagem nas mídias sociais atendendo o pedido daquele auto intitulado “mestre”:
– Não esquece de me marcar pra dar aquela força ao mestre aqui, falô?
Repentinamente distraída pela agitação, me mantive sentada ao chão, de olhos fechados e atada ao pet pela guia à mão. Assumi como teste: permanecer incólume à atabalhoada dupla seria o desafio do exercício de auto controle daquele dia. O esforço certamente daria bons frutos e, um dia, tornaria o dedicado treino hábito natural.
Assim, consciente do desafio, recorri à repetição mental de um mantra cadenciado intuitivamente criado na necessidade do momento:
– Nada me tirará a paz…nada me tirará a paz… nada me tirará a paz…
Mestre e pai ao contrário
Não era a primeira vez mas a terceira de uma situação abusiva protagonizada por personagens reconhecidos pela má conduta. Mestre e discípulo, como pai e filho mancomunados, invadiram e se apropriaram do local público e sob o alerta do “mestre” se aprumaram para mais uma aula privada:
– Vambora começar logo antes que alguém chegue e reclame da gente aqui.
Talvez a adrenalina lhes estivesse prejudicando a consciência e a visão. Afinal, eu estava ali e pior: testemunhando, mais uma vez, o fulgurante egocentrismo de mestre e discípulo e lamentando o fraco discernimento de dois adultos ensimesmados e cegos ao espaço alheio.
Minha presença silenciosa parecia lhes dar aval para invadir e fazer do local de uso coletivo, espaço reservado de recreação. Imóvel por fora e inquieta por dentro, não quis acreditar: vivia triste déjà vu de um exercício de cidadania ao contrário… de novo.
Dia de prova é diferente
Ainda me perguntava se valia a pena desperta-los para o óbvia afronta quando a voz da ponderação respondeu:
– Aquiete-se, não vale a pena… aquiete-se, não vale a pena… – e novo mantra nascia.
A manhã, então, virou dia de prova e a meditação, atitude. Enquanto forçava a barra na tentativa de manter os olhos cerrados, o corpo retesado pelo esforço extra reclamava. O incômodo gerado pelo desrespeito da situação acendeu meu alerta interno: hoje essa história muda.
Cidadania corrompida
O treino começou; quer dizer, o deles porque o meu, interno e invisível aos olhos, já estava em curso. Mestre e discípulo enfim mostraram o porquê do som naquele contexto: apertando o botão, o gongo literalmente soado dava como iniciada a aula particular de boxe no píer de utilidade pública.
– Vamo devagar… pra ninguém chiar… – aconselhou o mestre ao atento discípulo.
Não chiei. Talvez nem esperassem uma reação de minha parte. Afinal, já os conhecia de outras (duas) ocasiões iguais. Talvez cressem apoia-los naquela dinâmica. Ensimesmados, estavam definitivamente cegos ao entorno. Praticando a cidadania conveniente, prescindiam regras e violavam espaços pautados na ausência de testemunhas. Escondido, usurpar direitos alheios era relativo.
Como pai e filho ao reverso
A dor no corpo se alastrara e a cada segundo aumentava; por fora e por dentro. Professor e aluno, mestre e discípulo e, impossível não associar – pai e filho – sentindo-se finalmente seguros, subiram o volume do escamoteado aparato ao máximo enquanto eu elevava ao extremo minha inconformidade com a situação.
Sou leiga naquela modalidade mas é inegável como esporte – inclusive o boxe – promove senso de cidadania a quem aprende e ensina mais do que o mero exercício físico. Surpreendente como aquele mestre responsável por dar exemplo de valores e princípios a seu discípulo ignorasse premissa tão básica de formação.
Em vez disso, como pai e filho ao reverso, reforçavam conduta deletéria de uma sociedade hedônica em um mundo há muito ensimesmado.
A pérfida confabulação
Ironicamente usavam a alcunha de “mestre” e “discípulo” mas pareciam mais pai e filho em íntima confabulação. Ao largo de títulos tão honrosos, a dupla ufanava no hedonismo de um mundo ensimesmado revelando o individualismo típico de cidadãos descomprometidos com a sociedade.
Não eram adolescentes em fase de amadurecimento mas adultos movidos pelo desejo de satisfazer suas vontades a qualquer custo. Não lhes importavam as regras tampouco as circunstâncias: dispor do coletivo em benefício próprio – e exclusivo – lhes era prática natural… e recorrente.
O desrespeito a fundamentos básicos de uma sociedade dita civilizada me incitava a reagir. A mostra de uma cultura pautada no jeitinho autocentrado escancarava a permissividade entranhada em situações cotidianas. Sentia a reincidente conduta como golpe moral duro, silencioso e disfarçado.
A cidadania pervertida na prática
Ignorada e quase vencida, pela terceira vez me preparava para ceder na civilidade não correspondida até que a manhã, inicialmente tranquila, mudou de ares. Inspirada por uma perspectiva diferente passei da apática resignação à ativa argumentação:
– Oi, gente, bom dia. – iniciei – tava ali meditando como de costume quieta e tranquila contemplando a vista linda e vocês, como também de costume, chegaram. De repente se apoderaram do espaço para uma aula particular inapropriada ao local e, como sabem, de acesso ao público. Vocês acham isso certo?
Entre um golpe e outro, o discípulo ofegante respondeu:
– Ah, tudo bem… a senhora pode ficar ali mesmo… sem problema. – e apontou de onde saí.
Por um instante, entendi que a luta então seria em trio:
– Verdade, posso… mas o incômodo causado por vocês me impede disso. Além deste píer proibir exercícios, outros usuários tem o direito de – e desejam – usufruir do local como lhe é permitido. Porém, também não conseguem porque vocês ocuparam todo o espaço em benefício exclusivo – respondi apontando para os cinco amontoados à entrada do píer que, à distância, se esgueiravam resignados com o filete de sobra a eles imposto pela dupla.
Não conformeis com o mundo, filhos
O desenrolar da história foi discussão comprada com argumentos e absurdo acionamento de autoridades. Sinceramente, não é o que importa. Em vez disso, discutir a situação com filhos adolescentes em formação de caráter e consolidação de valores seria mais produtivo:
– Sei lá, mãe, que saco! Mas acho que não falaria nada… deixaria pra lá. – ponderou o apaziguador.
– Acho que fez certo! E ainda diria pra ele olhar pra mim enquanto falava com ele! – validou o intempestivo.
Adultos vivem o mesmo dilema de jovens: fazer valer seus direitos requer olhos habituados a enxergar além de si mesmo, habilidade rara no mundo de ensimesmados. Perdidos em si mesmos professor e aluno, como que pai e filho complacentes, ratificavam modelo de sociedade fraca e deseducada ao coletivo.
Ainda que não culpe filhos adolescentes de se sentirem divididos em difícil posicionamento insisto em lhes reafirmar por meio de exemplos práticos do cotidiano:
– Filhos, não conformeis com o mundo.
Pais e filhos de um mundo ensimesmado
Somos geração de pais de adolescente criticados por uma prática, a priori, incompetente. Viver o episódio – e outros similares no dia a dia – me fez pensar se não há motivo para tanta reprovação. Quando situações adversas ou simplesmente constrangedoras como esta me chamam a lutar por premissas básicas de um convívio minimamente civilizado, tendo a crer que há. Somos discípulos cegos de um mundo ensimesmado.
Porém, esta história também pode mudar. O tão almejado “mundo melhor” que tanto desejamos e falamos precisa começar hoje a partir de práticas simples do cotidiano e incentivadas continuamente até e tornarem naturais. O que faço escondido ou sozinho não deve ser motivo de repreensões à luz e aos olhos do outros.
Do contrário, não importa idade ou fase de vida, título ou situação, continuaremos sociedade medíocre regida por mestres e discípulos de um mundo incorrigivelmente ensimesmado.
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