Dia dos Pais… sem pai. Quando minha mãe morreu, me senti perdida. Era adolescente e os sentimentos – naturalmente já bagunçados – ficaram ainda mais confusos. Além da tristeza de conviver com a sua falta no mundo (ideia muito louca para conceber com minha mente ainda imatura), me aterrorizava pensar como viveria a partir de então:
– Quem cuidaria de mim?? – me perguntava ainda sem uma resposta que me acalmasse a alma.
Esta foi só uma das inúmeras inquietações que me assombrou quando a perdi. Especialmente porque ainda era jovem , quando apreensões como esta são típicas de quem se vê – e imagina – para sempre sozinho sem seu cuidador e porto seguro.
A morte de minha mãe mexeu comigo profundamente mas só compreendi a dimensão da “bagunça interna” muito tempo depois: quando meus filhos também perderam o pai… e ainda mais jovens do que eu.
Dia dos pais e suas versões
Quando perdi minha mãe, o Dia das Mães virou tabu pra mim. Ainda que reconhecesse o apelo comercial da data, me sentia solitariamente vítima. Recorda-la me machucava; falar dela então, pior ainda. Era dor somática, sentida no corpo: nó na garganta, coração apertado, falta de ar, respiração ofegante, olhos lacrimejantes. Melhor não falar… nem pensar. Só silenciar; fora e dentro.
Como, então, “sobreviver” ao Dia das Mães culturalmente propagado por mídia comercial e sociedade consumista? Como resistir à autocomiseração quando todos, repentinamente acometidos por pontual frenesi, se veem praticamente forçados a declarar seu amor de filhos devotos?
Dia das Mães costumava ser ocasião de sentir o peso da orfandade ostensivamente. Era data em que oficialmente me ressentia do mundo “injusto” que me transformara em filha “injustiçada”. Porém, anos passaram e a vida apresentou desafios maiores do que lidar com o ressentimento de me tornar “órfã de mãe”, status assumido em resposta à sua morte.
Assim cresci: sofrendo – ressentida – com o vazio gerado pela perda da minha mãe na juventude. Especialmente no Dia das Mães quando todos (ainda) parecem ignorar as diferentes realidades de cada família e a celebrar dia nem tão bom assim para muitos.
Família: projeto de parceria
Fui jovem carente da proteção e, sobretudo, do ativo cuidado de mãe em minha vida. Cresci batendo cabeça mais do que necessário, creio. Amadureci em meio a dor e a erros um tanto desnecessários, creio. Fiquei “cascuda” – diria ela – e, ainda assim, formei família; exatamente como desejara.
Contei com parceiro que compartilhava da mesma ideia e pratica. Não à toa formamos nosso núcleo familiar pautado em vínculos afetivos e assim vivemos: unidos e fortalecidos pelo desejo comum de sermos família; no sentido amplo da palavra, como parceiros de jornada.
Então a vida, de novo, apresentou desafios maiores e a dor da morte de minha mãe, um dia abafada, ressurgiu. Desta vez, pela dor de perder marido e pai dos meus filhos. Sob potente tsunami emocional, revivi lutos acumulados e buracos, por décadas fragilmente acobertados, foram escancarados de uma só vez.
Por um luto diferente do meu
Mais insuportável do que viver o luto é conceber filhos – ainda mais novos e repletos de sincera devoção paterna – sofrendo da mesma dilacerante dor. Sofrera com a morte repentina de mãe. Portanto, conhecia os sentimentos intrínsecos à súbita orfandade: desamparo, medo, saudade penosa.
Minha experiência de luto, extremamente solitária e dolorosa, de repente me pareceu mais útil do que ameaçadora. As circunstâncias me forçaram a pensar assim. Transforma-la em fortaleza para salvar filhos do perigo da vitimização e do ressentimento contra o mundo era não só o começo de uma historia diferente da minha mas a ressignificação da minha própria mal tratada.
Reconhecer a mesma dor invadir filhos reabriu o buraco vazio em mim. Nele, memórias dolorosas e até então escondidas, enfim, cobravam o devido cuidado um dia negligenciado. Feridas mal tratadas urgiam remédio certo para cicatrizarem.
Por filhos, fui então forçada a enfrentar o ressentido vazio gerado pela morte de minha mãe. Com eles, a experiência de perder o pai precisava ser diferente da minha. Órfãos como eu, tudo o que desejava era resultado diferente do meu.
O luto pelo pai
Enquanto cuidava das feridas emocionais recém abertas, alertava filhos contra os traiçoeiros sentimentos que insistem em surgir em momentos de luto: a autocomiseração. Assumir atitudes e palavras de acolhimento e segurança foi parte do que me faltou no passado e que, fazendo diferente com filhos, sabia que fariam a diferença em nossas vidas.
Primeiro: a força da conhecida tempestade seria combatida a três, em parceria. Diferente do que aconteceu comigo no passado, enfrentaríamos a tormenta juntos, em família. Segundo: a experiência seria vivida com coragem e transparência; nada de esconder sentimentos. Medos, angústias e tristeza seriam expostos nem que, para isso, emergisse nosso pior. Por fim: o luto seria vivido por completo com todo tempo e atenção necessários para se tornar cicatriz, ou seja, marca sem dor.
Aprendemos a nomear sentimentos, a expor nossos fantasmas e, sem cerimônia, recordar momentos de alegria. Dividi minha experiência de luto ainda jovem, historia até então desconhecida por filhos. Embora profundamente feridos, falar do pai nos manteve despertos para aguentar a dor até que se tornasse memória saudosa… sem ela.
A renovação do pacto familiar
Adotar comportamento tão distinto do vivido foi exercício desafiador mas, sobretudo, vital à família. Manter filhos conscientes do luto e a mim mesma atenta às fragilidades e aos riscos envolvidos no processo nos preveniu da vitimização e do ressentimento nutridos e escondidos até então.
Estar de fato presente e junto de filhos para passar pelo luto de pai com tempo e disponibilidade os tem ajudado a tratar e a, pouco a pouco, fechar as feridas; desta vez sem brechas inúteis e perigosas. A dor da perda, o assustador desamparo e o imenso buraco aberto no coração são atrozes mas, com determinação, podem também nos impelir a algo maior: renovar pacto de parceria em família.
Assim fiz declarando claramente ao meus pequenos guerreiros:
– Conheço esta dor. Sei o que estão sentindo. Sofro e permaneço junto de vocês atenta às suas necessidades. Nunca me distrairei de cuidar porque sou mãe e vocês, filhos. Nunca desviarei meus olhos de vocês porque são meu maior tesouro. Portanto, força, coragem! Não somos vítimas nem coitados. Garanto a vocês: vamos passar por esta tempestade juntos e sairemos mais fortes, juntos. Continuamos… juntos!
Aos pais memoráveis
Ainda não sabia mas agir diferente com filhos em situação similar de luto me levou a tratar de ferida própria – aberta e não tratada – da juventude. Crescer sem mãe e filhos, sem pai, sem dúvida dói; mas a vida espera nossa resposta às intempéries e, quando não atendida, cobra: viver “bem” o luto é remédio para seguir adiante livre de amarras que só tornam o caminho mais difícil… e pesado.
Assim, livres, vamos dando nova cara ao Dia dos Pais – e das Mães. Libertos das vitimizações e dos ressentimentos, vamos descobrindo novas formas de viver a vida como ela é:
– Meu pai é falecido. – respondem naturalmente filhos saudosos do pai a quem lhes pergunta sobre.
Hoje, reconhecemos a saudade deixada por pai e mãe ausentes por meio de memórias carinhosamente relembradas, fotos revisitadas e histórias repassadas. Rimos e choramos sem dor, com amor nutrido por todo o ano. Celebrar Dia dos Pais – e das Mães – deixou de ser ocasião comercialmente celebrada. Perenemente vivida ao longo dos dias, virou homenagem sempre viva, salutar e leve.
Feliz Dia dos Pais! Presentes ou não, que todos pais sejam, acima de tudo, para sempre vivos e memoráveis na vida de seus filhos.
Leitura sugeridas: Ser mãe solteira: uma questão de atitude, Pais separados: sobreviver à dor é o primeiro passo para a preservação, Legado para filho adolescente
No Comments