Ter filho ou ter pet: quem inventou essa comparação?

by Xila Damian

Um exercício diferente

Se você malha certamente já escutou alguma conversa alheia na academia.  Dos mais reservados até os mais falantes, todos já participaram voluntaria ou involuntariamente de papos promovidos entre um exercício e outro enquanto se exercitava.

Foi assim que, dia raiando e devidamente disposta à habitual malhação, fui fisgada por um papo paralelo em que um trio discutia entusiasticamente uma comparação nada incomum: “ter pet é igual a ter filho”.

Tão cedo e as vespertinas alunas já trocavam opiniões assertivas sobre o tema enquanto eu… bem, eu escutava disfarçadamente:

– Aaah, aaaamo meu cachorrinho! Sou suuuper carinhosa com ele e vice-versa.  Somos parceiros mesmo! Não sei viver mais sem ele! – dizia uma delas.

– Ai para, Nanda, que bobagem!  Taí uma coisa que não quero ter: pet.  Já filho…

– Que isso, Tata!  Você não sabe o que é ter filho, ainda por cima adolescente todo dia te enchendo o saco.   Se tivesse a mínima noção, não pensaria em ter filho muito menos pet. Nem pagando quero um. Tô fora!

Risadaria.

Repentinamente sacodida da entorpecente preguiça matinal, despertei para a conversa.  Afinal, sou mãe de adolescentes e tenho um pet o que, naturalmente aguçou minha curiosidade sobre as diferentes teorias defendidas pelo trio.

– Também não é assim, né, Dani!  Que exagero. Ter pet é como ter filho: dá trabalho mas é tão bom quanto.  A diferença é que o bichinho nos ama incondicionalmente enquanto filho…

De olhos saltados, pupila dilatada, subitamente virei para o grupo evidenciando  desconforto à afirmativa.  Porém, entre risos e falatório, entretidas nem me notaram.  /a discussão estava interessante demais para desviar a atenção a outra coisa senão as diferentes percepções sobre o assunto.

Naquele dia, a malhação prometia ser diferente.  E foi.

Ter pet ou ter filho? Eis a questão

O papo rendeu e o trio totalmente distraído do meu interesse no despretensioso colóquio seguia sem notar minha presença de fora. Tamanha era minha atenção sobre as amigas que logo me vi mais absorta na questão do que elas mesmas.

O dia mal começava e a malhação mental já era intensa.

Assim, inesperadamente reflexiva, passei a analisar a comum comparação exercitando extenuante diferenciação entre as funções. Até então, ter pet e ter filho eram indiscutivelmente distintas e incomparáveis… ou não?

Usando de todo meu pragmatismo – embora insuficiente –  encontrei nuances reveladoras e, ao mesmo tempo, espantosas entre ter pet e ter filho.

Os argumentos de que ter pet demanda esforço do dono para educa-lo a uma convivência saudável é tão válido quanto óbvio ainda que muitos não compartilhem da mesma opinião.  Até aí, estamos quites.  Então, o que efetivamente diferencia uma situação da outra?

Enquanto me fazia a pergunta absorta em meus pensamentos, deixei escapar os alteres no chão. De repente, olhos curiosos virados para mim me arrancam um sorrisinho de desculpas ainda sem graça pela inconveniência do susto e da escuta inapropriada – ainda que não tivessem notado.

Passado o constrangimento, voltei à pergunta que ecoava em minha mente:  qual a diferença entre ter pet e ter filho, bolas??

A pergunta que não quer calar

Em pleno colóquio mental, sou surpreendida com uma cutucada no ombro.  Era o professor:

– Tudo bem? Precisa de alguma ajuda?

De novo um sorrisinho desconcertado.  Agradecida da preocupação, tentei retomar o exercício – àquela altura já comprometido – mantendo-me antenada às defesas de opinião alheias.

Escuta aguçada, perdia o treino mas nunca os lances subsequentes daquela discussão, no mínimo, curiosa.

– Gente, não basta se responsabilizar pelo bichano – dizia se não me engano a Ana,  inferindo aspas na palavra de destaque. –  É preciso também cuidar de seu bem estar afetivo-emocional. – sentenciou.

Peraí: concordava com mais aquela afirmação. Ter pet e ter filho realmente tinha mais em comum do que podia imaginar! Então..

– Qual seria a diferença, pelo amor de Deus? – me questionava aflita em busca de provas ainda imprecisas.

Ter pet e ter filho sem comparação

Dona de pet e mãe de dois adolescentes me negava a me curvar às similaridades  defendidas.  Por mais que concordasse com alguns dos argumentos, me recusava a aceitar a comparação. Por mais que a associação soasse plausível, ter pet e ter filho são funções definitivamente incomparáveis porque… são relações totalmente diferentes!

Ainda que as semelhanças saltassem facilmente, ter filho vai muito além da educação e do “apego”.  É se comprometer à mais desafiadora missão humana: formar outro ser saudável, quiçá melhor, para o mundo.

Tamanho desafio vai muito além do suprir as necessidades básicas de filho como o é do bichano: filho é ser pensante e sociável; é ser humano. Responde a estímulos e ideias  conscientemente enquanto pet é adestrável, ou seja, treinado para corresponder às expectativas do adestrador.

Ainda que muitas vezes pais nutram e até esperem comportamento similar de filhos – especialmente de filhos adolescentes – ter pet e ter filho nunca será experiência igual sequer parecida porque ter filho é, antes de tudo, dever e compromisso de contribuir para um mundo melhor sem garantias de nada.

A real sobre ter pet e ter filho

Abduzida em um debate mental solitário, paralisei deitada sobre o colchonete. Apesar do esforço intelectual, o corpo estava relaxado.  Diferente de outras manhãs, a malhação acontecia mais inusitada e desafiadora. Fundamentar minha opinião de que ter pet e ter filho era comparação esdrúxula, me inquietava mentalmente e fisicamente me mantinha intacta sobre o chão.

Educar pet implica adestra-lo com o objetivo de ter sua obediência irrestrita aos meus comandos.  A expectativa do dono, portanto, é contar com bichano submisso e eternamente vinculado por um amor – ou medo escamoteado de respeito? – incondicional.  Ter pet é contar com um ser inexoravelmente fiel seja por qual motivo for.

De fato, não há como esperar o mesmo de filho; especialmente de filho adolescente.  Ter filho é prover seu desenvolvimento saudável – e  completo – sem nutrir expectativas.  É viver o amor magnânimo: amor vivido na prática sem expectativas de retorno e, ainda assim, ser completamente apaixonado por filho.

Ter filho é se doar em missão sem prazo de validade e sem garantias de sucesso; é estranhamente viver o novo a cada dia até quando pensa já saber e conhecer tudo; em suma, é aprender continuamente, superar-se indefinidamente e, apesar deste imenso desafio, persistir amando incondicionalmente.

Enfim, minha tese.

O exercício mudou meu dia

Ter pet e ter filho continua sendo para mim funções totalmente incomparáveis e me pergunto de onde surgiu esta ideia.  A experiência de ter filho é indescritível por se tratar de relação humana única e singular, incomparável a qualquer outra, menos ainda a uma animal.

Quando ter filho é missão assumida e guiada por valores sólidos de compromisso com um mundo melhor se torna experiência de aprimoramento pessoal e de vínculo em uma jornada de crescimento mútuo em que a imprevisibilidade do resultado vira dedicação mais pura, menos egoísta.  Eis a diferença – eis a essência – de ter filho.

Novamente, o professor. Agachado ao meu lado e visivelmente preocupado, me sacode levemente:

– Tá tudo bem mesmo?

Desperta de uma espécie de transe, respondi finalmente aliviada:

– Agora sim.

E, sem pensar, lhe pergunto:

– Você tem pet? Tem filho?

Intrigado com a inesperada pergunta e sem entender bem o porquê dela, respondeu:

– Nem um nem outro; dão muito trabalho.

– Verdade, ambos dão trabalho.  Se não estiver disposto a assumir a missão e a responsabilidade, melhor mesmo não ter nem um nem outro.  Mas… se quiser entender melhor a real diferença entre eles, te explico porque, de cara te digo: ambos são incomparáveis.

– Hãm? Não entendi… vou te trazer um copo d’água; talvez sal… sua pressão deve ter baixado. Não tá falando coisa com coisa.

Sorriso no rosto, agora não mais de vergonha mas de satisfação por responder à contestável tese de que “ter pet é como ter filho”.  Naquele dia, escutar papo alheio de academia mudou meu dia que apenas começava diferente por me reconhecer mais feliz por ser mãe de dois adolescentes.

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