Como o Rock in Rio me revelou a filho adolescente

by Xila Damian

Meu filho não me conhece

Já te ocorreu que seu filho pode não te conhecer? Digo conhecer como você realmente é: seus gostos, interesses; sua identidade. Pensei nisso quando, a poucas semanas de iniciar o Rock in Rio, meu adolescente pediu:

– Mãe, compra o ingresso do Rock in Rio pra mim?

Imediatamente respondi:

– Oba! Liberaram as vendas? Também quero! Que dia você tá pensando em ir? Tô doida pra ver Coldplay… – e antes que repentina euforia dominasse a conversa, filho interrompeu:

– Mãe! Desde quando você vai a festival de música? Além disso,  não acha que eu vou com você, né?

– Que isso, filho! Aaaamo rock!  Graças a mim você gosta de música! E pra assistir uma das minhas bandas favoritas, é claaaaro que encaro um Rock in Rio! Aliás, fui uma vez e iria de novo… desde que com alguém, né? Então, vamo?

– Ai mãe, que saco, tá brincando… vou com a galera, né? Pra dizer a verdade, nunca imaginei que se daria ao trabalho de pensar em ir… Além do mais, vou outro dia… Você paga meu ingresso?

Descontada a inábil comunicação de filho, aquele diálogo – um mix de rejeição e desconhecimento – me despertou para uma questão totalmente nova:  até que ponto filho conhecia minha história e, por tabela, meus gostos e interesses?

Filho surpreendido

A surpresa de filho sobre meu interesse e disposição de ir ao festival de música me intrigou: filho não me conhecia. Sabia nada sobre a estudante mediana, namoradeira romântica, atleta esforçada, universitária roqueira que fora.

O “combo”, construído ao longo de décadas de experiências, ajustes e mudanças, foram a base de minha identidade que, hoje, parece-lhe diferente do que realmente sou. De repente, dei-me conta de que filho nada sabia de mim.

Fui jovem tímida e introspectiva bem diferente da adulta que me tornei.  Daí, talvez, a estranheza de filho: desconhecendo minha história desconhecia também meus interesses e gostos “tão diferentes” a ponto de não me reconhecer.

 Pais tem uma história

A ficha caiu quando percebi o hiato existente entre o antes e depois de ter-me tornado mãe. Pareci ter “zerado” meu passado e resetado minha vida depois de ser mãe. De alguma forma, desconectei-me do período anterior como que para começar o novo precisasse esquecer o antigo.  Tudo isso inconscientemente.

De fato, havia guardado no fundo do baú de minha memória outro valioso período de vida que, na verdade, me formou até aquela nova fase. Mãe, me apartei do passado. Escrevendo novo enredo, assumia identidade incompleta a filho recém-chegado em minha vida.

Desconhecendo minha história, filho crescia me enxergando de forma limitada pelas circunstâncias, o que naturalmente o surpreendeu quando parte de minha identidade até então não revelada, apareceu.

Intuitivamente o alertei:

– Filho, pais têm uma história, sabia?

O Rock in Rio me revelou a filho

O hiato entre nós era maior do que pensava. Costumava soltar episódios vividos como breves consultas de apoio a situações do presente sem notar que poderiam – ou até deveriam – ser mais completas para uma visão mais ampliada de mim.

Na verdade, nunca fui adepta a dividir memórias.  Também não me lembro de meus pais fazerem o que, hoje, até me ressinto. Talvez pelo exemplo também não as compartilhasse com filho.

Portanto, raras vezes troquei experiências de minha adolescência com filho; menos ainda de minha infância, período tão rico de fatos e histórias que tanto contribuíram com minha identidade.

O “estranho” interesse de ir ao tal festival de música foi motivo para mudar esta (falta de) prática. Passei a contar sobre a mulher que ele, de fato, nem de longe imaginaria existir dentro da mãe que via e conhecia.

Sob nova lente de filho adolescente

Comecei por contar da minha história familiar, a convivência com irmãos e pais, os encontros e desencontros, amizades e dificuldades na escola, memórias de um tempo que me constituiu e formou.

Enquanto me revelava, recordava quem ainda era , dentre muitos interesses, continuava amante de festival de música. Essência à flor da pele, pouco a pouco ia reconectando capítulos suspensos no tempo.

Íntegra, filho me desvendava. Às vezes surpreso, outras espantado, desconstruía imagens feitas a partir de uma leitura parcial. Ajustando sua lente, ia me enxergando mais… e melhor.

Atiçado pela curiosidade, quis mais: de minha experiência adolescente até meu ingresso no mundo adulto. Curiosamente o Rock in Rio me deu a chance de conectar passado e presente a ponto de me reintegrar com a identidade um dia abafada e, depois, esquecida quando me tornei mãe.

Fazendo-me conhecer a filho adolescente

Contei a filho sobre minhas preferências musicais; de fato, rock não havia sido meu estilo preferido na adolescência mas, por influência do pai, parceiro antenado e “fã, desde pequeno”, me deixei seduzir pelo som e conheci clássicos inesquecíveis até o gosto adquirido virar hábito familiar desde cedo em casa.

– Sempre tínhamos música tocando no carro ou em casa – recordei saudosa – Por isso, você e seu irmão aprenderam a gostar de música! – expliquei.

– Mãe, lembra aquela música que eu cantava tudo errado e você gargalhava? Não sabia porque mas ria junto contigo… era divertido… você ria engraçado…

Tocada pela lembrança ainda viva em sua memória, reconheci a valiosa experiência de compartilhar histórias de vida com filho adolescente e me fazer integralmente conhecida a ele.

Pais tem história pra contar 

Compartilhar memórias com filho me fez lembrar quem sou. Revelar-me a filho sob a lente do além-mãe aumentou nosso reconhecimento mútuo. Do espanto inicial, filho chegou à conformidade de me compreender pelas histórias da adolescência comuns em tempos, porém, bem diferentes.

Meu interesse no festival lhe soou, enfim, compreensível mas, no fim das contas, acabei desistindo dele: seria demais encarar os típicos perrengues de um Rock in Rio. Assistiria de casa, confortável e “livre de confusão”:

– Tô ficando velha, filho… –  disse rindo esperando um afago no ego.

Mas, como esperado de filho adolescente, outra pérola atirada:

– Viu, mãe, porque sequer i-ma-gi-nei que quisesse ir?  É cheio e cansativo pra você… não ia aguentar o tranco

Relevei sem discutir a grosseira lógica e sem, de fato, ligar para sua opinião. Estreante nos festivais – e na vida – conheceria muitas outras histórias que certamente o fariam me enxergar mais claramente… aí sim, como um dia sequer imaginou.

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