adolescente dorme demais

Meu adolescente dorme demais

by Xila Damian

Vitrola emperrada

Se você convive com jovens, concordará com a frase: adolescente dorme demais. E, se tiver filho adolescente certamente se irrita ou pena – ou os dois! – para acorda-lo. Aliás, só de vê-lo dormir tanto, já se inquieta e busca meios de mudar este, a priori, mau hábito.

Adolescente invariavelmente acorda tarde, come tarde, dorme tarde. Com certeza conhece a cena; mais: reconhece o estresse familiar causada por esta condição.  Aquela crônica de filho adolescente irremediavelmente cansado e, por isso, sempre dormindo.

Também já me irritei com isso.  Admito que, às vezes, ainda sofro recaídas de indignação com esta “característica” adolescente. Mas isso mudou bastante.  Não por mérito mas por interesse:  não aguentava mais me escutar feito vitrola emperrada reclamando diariamente sobre algo aparentemente sem solução.

Só de lembrar o passado recente do ritual diário, ainda arrepio: a repetição involuntária e automática da exclamação:

– Acorda, filho!  Você dorme demais!

era além de ineficaz, tão ou mais irritante que o próprio sono incapacitante de filho adolescente o que, naturalmente tornava o esforço de desperta-lo simplesmente inútil.

A trilha sonora de pais de adolescente

Como um hino (sacal) ritmado, azucrinava a casa toda pela manhã. Depois de cumprir meu agradável rito matinal, chegava a hora da conhecida exortação seguindo passos cadenciados. Primeiro, abria a porta do quarto e antecipadamente resignada, tomava fôlego;  em seguida, recitava o insistente mantra:

– Acorda, filho!  Você dorme demais!

Como vitrola emperrada, finalizava a maçante rotina escancarando porta e janela ciente: tudo em vão. Ritual cumprido, dava de costas e seguia murmurando pela casa enquanto me ocupava de outros afazeres. Presa em uma faixa de disco arranhado, entoava música diariamente tediosa a todos; até para mim:

– Será POS-SÍ-VEL?? – gritava já na sala – Filho, você dorme demais!

Quando me dava conta, estava falando – e discutindo – comigo mesma! Enquanto filho… bem, este seguia dormindo. Demais.

Adolescente dorme… mais!

A reclamação era comum nas rodas de pais de adolescente: todos escancaravam dinâmica e enfado similares. Reservadamente, cada um ia também admitindo ter assumido a função involuntária de vitrolas emperradas.  De repente, um a um ia se enxergando à beira de uma esquizofrênica situação cotidiana de hinos fatigantes e, pior, inúteis.

Ainda que me sentisse em parte até consolada, também me sentia desolada pela constatação. Mediante enquete tão pouco animadora, me resignei ao fato de filho adolescente dormir demais e pronto: abdiquei do papel de vitrola emperrada e me convenci de aproveitar o descanso em vez de chorar sobre o inevitável.

Porém, o desapego durou pouco. Inquieta, me mexi diferente: precisava descobrir a realidade com menos clichês e mais conhecimento. Decerto aquele sono incontrolável teria uma explicação. A resposta veio logo após uma breve pesquisa: a “situação” era, na verdade, uma “característica” adolescentemente biológica.

Pejorativa e, por isso, deficientemente explorado como mau hábito adolescente, tornava sua necessidade natural em hino injusto e insolúvel. De fato, adolescente dorme demais; não porque quer mas porque precisa. Portanto, dorme… mais.

Vitrola emperrada

Entender o desenvolvimento do cérebro adolescente expandiu minhas conexões neurais de mãe resignada a vitrola emperrada tanto quanto as de filho adolescente entediado com minhas reclamações.  Compreender seu processo de amadurecimento neural mudou minha opinião – e, depois, atitude – de que adolescente dorme demais.

Descobrir filho dormindo mais por incompetência biológica aliviou minha alma de mãe vitrola emperrada. Ainda desconcertada com o primeiro achado logo descobriria outro mais embaraçoso para corrigir: o da azucrinante lista de afazeres intermináveis.

A trilha mais conhecida entre pais e filho adolescente

– Caraaamba!  Finalmente, hein?!  Já fiz um monte de coisa e você nem começou o dia ainda! Vai! Toma seu café que, aliás, já deve estar frio…

– Mãe, tô acordando ainda. Dá um tempo pra me situar…

Entre bufadas e suspiros, me afastava resmungando sempre emitindo sons capazes de externar minha imensa indignação. Assim desperdiçava energia: a cada cômodo, um reiterado inconformismo. Baixada a rotação, sempre retornava ao ponto de encontro inicial.

Tal qual cega em tiroteio, averiguava a mesa.  Ainda intocada, acelerava a cena de novo convocando filho para finalizar o capítulo de uma vez por todas. Até me propunha a acompanha-lo como última tentativa de concluir a etapa de forma ainda cordial.

Renovados os votos de paciência, enfim me juntava a ele à mesa. Primeiro, em silêncio: a ameaça de estragar o momento me forçava atos comedidos. Durou pouco. Filho irrompeu:

– Huuum… esse pão é bom, hein!? Fresquinho…

Surpresa com seu deleite e rápida “página virada”, respondi:

– Fresquinho porque fui à padaria logo cedo comprar, né?  Aliás, levando o cachorro, depois de preparar a mesa do café e lavar a bendita varanda toda suja de caca.

Silêncio. Climão.  Hora de pausar ali mesmo.

Enxergando além do óbvio

Televisão ligada, repórter anunciava mudança de tempo. Filho arrisca – ou abusa? – de novo:

– Pô, tava afinzão de ir à praia, pegar uma cor…

Imediatamente reajo:

– Praia? A essa hora? Endoidou? Adolescente dorme demais mesmo: passou da hora de almoçar, estamos tomando café e você ainda quer ir à praia?  Em vez disso, que tal trocar de roupa – há diiiias a mesma! – lavar o carro – há semanas sujo! – e malhar – há meses sem praticar?

Saco, mãe!  Não dá!  Se eu durmo demais, você reclama demais! É sábado, lembra? E, mesmo assim, quer que eu acorde cedo! Só porque você gosta de madrugar não quer dizer que eu também tenha que gostar, pô! Não durmo “demais”; durmo o que preciso dormir!  Não tenho controle sobre isso!  E, cá entre nós: tudo o que tá me mandando fazer é o que você até gosta de fazer; eu não!

Silêncio. Climão. Vitrola emperrada prestes a destrambelhar de vez. Respirei fundo; várias vezes; minutos que pareciam horas mas que surpreendentemente serviu para enxergar além… de outro ângulo.

Nova faixa sonora entre mãe e filho adolescente

De fato, gosto de acordar cedo, hábito adquirido primeiro por necessidade que virou prazer por me inspirar a ordenar o dia no silêncio e tranquilidade rapidamente dispersa pela agitação do mundo.  O café da manhã é mesmo minha refeição preferida; talvez por consequência do bom começo do dia.   Daí estimar um caprichado com pãozinho fresco.

Limpar caca de cachorro definitivamente não me agrada. Pelo contrário: me irrita; profundamente.  Por isso mesmo passei a encarar a tarefa como exercício de paciência.  Transformei em oferta de sacrifício. Mas isso leva tempo, né? Enquanto isso, ecoo verdadeiros hinos maternos de vitrola emperrada.

Passear com o pet , por outro lado, é momento de introspecção e também encontros.  Tarefa que vira passeio descontraído e por isso revigorante aguçado pelo cheirinho de pão saído do forno na padaria que, claro, não me esquivo de comprar: me jogo de vez.

Debruçada sobre o breve repasse de tudo que costumo fazer no começo do dia, concordei com filho.  De fato, aquele ritual me agrada.  Ainda combalida pela descoberta, voltei à rotação normal até lhe sorrir. Em movimento progressivo, gargalharmos ao mesmo tempo. Enfim demos aquele empurrãozinho na agulha emperrada e a vitrola seguiu.  Desta vez, tocando a trilha certa e muito mais agradável aos ouvidos de todos da casa.

Mudar de faixa é possível

Ansiosa por fazer o dia render e completar minhas atribuições domésticas, jogava no balaio da rotina diária culpa e peso desnecessários na conta do filho adolescente. Contribuir, dividir tarefas, acordar tarefas, tudo é salutar… e negociável.

Cansa, eu sei mas isso não impede que também me autodeclare livre de faze-las quando não estiver “a fim”. Sem drama, sem (auto) cobrança, sem vitimização e, principalmente, sem culpa. Impossível? Teoria? Nada disso.  Fato e sobretudo, prática sem a claustra dicotomia do “certo” e “errado” “justo” e “injusto”.

A questão é: as necessidades e os desejos individuais de mãe e filho adolescente, na maioria das vezes, embolam e agarram. Traiçoeiramente adotamos hinos de vitrola emperrada inúteis à relação familiar. Mas, atentos e humildes, é possível dar o “empurrãozinho na agulha” e , enfim, mudar de faixa.  De preferência, para uma melhor.

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